No início de 2002 nos reunimos no CN 3
semanas antes do início das aulas. A primeira semana era utilizada
para que os oficiais passassem instruções aos oficiais-alunos e
adaptadores. Nessa ocasião conhecemos o novo Comandante do Corpo de
Alunos (COMCA): Capitão de Corveta Luiz Antônio, vulgo Calcinha.
Como comentei no post anterior, a idéia
do comando era aumentar a disciplina e logo o COMCA passou a nova
voga (rotina): trotes não seriam mais admitido e severamente
punidos. Além disso, a chegada dos novos alunos deveria ser
tranquila, sem gritaria e confusão, diferente de nossa adaptação.
Nos meus dois primeiro anos os alunos
eram divididos em 5 Companhias, cada uma contendo 3 pelotões. Dessa
maneira, os 22 oficiais-alunos eram:
- O Comandante-aluno (01)
- O Imediato-aluno (02)
- 5 Comandantes de Companhia (Comcia)
- 15 Comandantes de pelotão (Compel)
Contudo, além da mudança do COMCA,
uma mudança estrutural ocorreu. Foi criada a sexta companhia, talvez
para ficarmos mais adequados à forma como era a organização na Escola Naval. Sendo assim, com a nova companhia, surgiram mais 4
vagas para oficial-aluno (OfAl), que passaram a totalizar os 26
primeiro colocados.
Eu havia sido o 22o e por
conta disso seria o Comandante do 3 pelotão da quarta Companhia.
Isso era excelente para mim: eu tinha feito parte da 4a
Companhia no primeiro ano e seu responsável era o Tenente
Alexandre, que como já comentei em um post, era boleiro e eu tinha me tornado
peixe dele nos dois anos anteriores.
Tudo acertado na primeira semana,
partimos para o CIAGA para receber os novos alunos. Foi uma
experiência ímpar retornar àquele lugar, dessa vez como caçador e
não como caça. Nessa posição, você já procura pelas presas que
destoam no grupo de ovelhas. Observamos os adaptandos se despedindo
de seus familiares antes do embarque.
No meu ônibus estava o Tenente Reis, o Mario Gomes e eu. O Mário Gomes era mais que uma “mãe”, era uma “avó”, então não pretendia de maneira ser
escroto. Mas nem precisava ser. Eu tinha sido criado na Divisa de Santos, era acostumado a
zuação maldosa dos amigos, então não perderia a oportunidade de
proporcionar aos novos alunos muitas das “agradáveis”
experiências que passei durante minha própria adaptação.
E nas boas vindas durante o embarque,
repeti o mesmo que tinham feito comigo 2 anos atrás. Com o ônibus
ainda no CIAGA, eu disse aos adaptandos: “Vamos lá pessoal,
cumprimentem seu familiares, você são motivo de orgulho!”. Quando
o ônibus saiu da Organização Militar e virou na Avenida Brasil, a
voga logo mudou, falei em tom agressivo: “Ok pessoal, agora vocês
podem fechar as janelas. Eu sou o oficial-aluno 3022 Nuccitelli, quem
esquecer disso está fudido. A partir de agora você tem direito a
falar apenas 3 coisas: Sim Senhor, Não Senhor e Quero ir de baixa”.
Logo após essa boa vinda, carteei um e perguntei: “Qual meu número
e meu nome?”. Gaguejou e eu logo esculachei: “Você está de
sacanagem aluno, não limpou essa merda dessa orelha, eu acabei de
falar isso”.
Vendo isso, alguém riu. Todos
adaptandos usavam uma roupa padrão: calça jeans e camiseta branca
de algodão. Mas não o Biro Biro, aluno que riu. Ele usava uma
camisa azul com lista laranja horizontal. Ele tinha o cabelo igual o
do antigo jogador do Corinthians e por isso o apelidamos assim. Então
sentei ao seu lado e perguntei se estava achando engraçado. O
rebarbado respondeu que sim e eu anotei o nome dele. Falei: “Você
vai retirar esse sorriso da cara rapidinho”. Ele continuou rindo.
Então fiz a promessa: “Ok, você já está convocado para todos
pelotões elétricos durante a adaptação”.
Entreguei o livro “Nossa Voga” para
o pessoal. Nele existiam informações sobre o CN e também os hinos
que eles tinha que aprender. Já durante a viagem, os adaptandos iam
cantando o hino do CN (colocar link aqui despois). Eu dando todo o
“apoio” necessário para que eles cantassem cada vez mais alto.
Chegando no Naval, meu ônibus foi o
último a entrar. Observei que meus amigos tinham “cagado” para a
instrução da chegada tranquila ao CN. Não perdi tempo: “Todo
mundo fora desse ônibus, quem for o último estará junto com o Biro
Biro em todos os pelotões elétricos, só quero o último!”. Foi
engraçado ver a turma correndo desesperada, tropeçando em mala,
assim como havia ocorrido comigo.
Logo depois que levamos os alunos ao
alojamento, o COMCA mandou reunir todo mundo e deu a maior mijada.
Mas eu posso te falar que pra todo mundo aquela bronca valeu mais do que a pena.
No alojamento do primeiro ano, ficavam
dois terceiro-anistas para manter a ordem. Eu gostava muito da idéia
de liderar, por isso tinha estudado par ser OfAl. Assim, me
ofereci para ficar como responsável pelo primeiro ano e convenci o
Pirula a fazer o mesmo.
Durante as noites, ocorria o famigerado
Pelotão Elétrico. Basicamente os adaptadores montavam uma lista com
alunos lanceiros (lance é fazer algo errado) e a turma ficava
fazendo Ordem Unida (marchar e movimento marciais) enquanto o resto
podia descansar. Me lembro de passar em um deles e ver o Biro Biro,
que como eu tinha prometido, já estava escalado desde o CIAGA.
Perguntei para ele: “E aí Biro Biro, ainda com vontade de rir?”
e a resposta foi imediata: “Não senhor”. O sistema fazia
todo mundo se enquadrar rapidamente.
A adaptação seguia e a “integração”
continuava. Tenho que confessar que eu era filho da puta, mas era
engraçado, até mesmo para os alunos que estavam se ferrando. Me
lembro de entrar no banheiro do primeiro ano e era aquela correria.
Um monte de gente descalça nos chuveiros. Cara, era um banheiro
comunitário para 230 alunos. Não pensei duas vezes: “Banheiro
sentido!”. Coloquei a porra do banheiro todo em sentido, olhá que
merda, um bando de macho no banheiro parado em posição de sentido.
Perguntei: “Quem dos senhores urina na porra do box do chuveiro?”.
Resposta em uníssono: “Ninguém senhor!”. Então argumentei “Mas
eu mijo nessa merda todo dia. Seu porcalhões, quem está descalço, pode
ir colocar a gueta (chinelo) agora, antes que peguem uma micose!”.
A galera riu e foi colocar o chinelo. Eu seguia sempre essa linha: um
filho da puta engraçado.
Lembro de outra vez em que eu estava
com o mesmo uniforme do pessoal, o GDP, uniforme de educação
física. Assim, era difícil me diferenciar dos boys. Eu tinha
mandado todo mundo tomar banho e estava me dirigido a ala das camas.
Passa um do meu lado dizendo baixinho para outro “Caguei pro Renzo, vou tomar banho
não”. “Aluno sentido! Ta de sacanagem seu sujismundo, essa merda
de alojamento já está fedendo e você não quer tomar banho, vai
tomar banho agora!!!”. Cara, pra um moleque de 19 anos ter todo
esse poder era muito foda.
Mas então uma mudança aconteceu. Por
alguma razão, o pessoal tinha errado no cálculo das notas dos
alunos. Ao perceber isso, uma nova classificação foi gerada. Eu
passei a ser o OfAl 3025. Ou seja, faria parte da primeira
Companhia, cujo responsável era o Tenente Anselmo, que não
costumava ser muito agradável com os alunos.
Mas o pior não foi isso. Com a
mudança, alguns companheiros deixaram de ser oficial-aluno. O pior
caso foi o do Daniel Gama. Ele estava morando em Manaus com os pais e
retornou só por conta de ser ComPel. Foi uma tremenda lambança que
acabou me desmotivando e a alguns companheiros. A única coisa “boa”
foi que descontamos a frustração nos primeiro-anistas. Eles já
tinham decorado o número de todos ao alunos, e tiveram que redecorar
tudo.
Mas a vida continuou. Certa noite eu e
o Pirula estávamos batendo um papo e vimos uma sombra se dirigindo
ao banheiro. Chegando lá, vimos um aluno e gritamos “Sentido”.
Quando vi quem era, falei: “Grande Biro Biro!”. O Pirula sempre
foi um cara tranquilo, mas não sei o que deu nele naquela hora. Ele
perguntou pro Biro Biro: “Boyzão, você veio aqui dar uma
barrigada certo?”. Quando ouvi ele fazendo isso, já logo entendi o
que ia acontecer. Sempre ouvimos sobre um trote das antigas chamado
“lavagem cerebral”: a turma enfiava a cabeça do aluno na privada
e dava descarga. O Pirula prosseguiu: “Pode escolher a porra do
banheiro mais sujo nesse banheiro”. Ele escolhei um e eu
complementei a maldade: “Então, você vai dar a barrigada nesse
banheiro, não vai dar a descarga. Quando acabar, nós vamos enfiar sua cabeça aí e só então daremos a
descarga”. Cara, ele estava na posição de sentido nesse momento.
Os olhos primeiro brilharam e a quando ele piscou, as lágrimas
caíram. Com voz de choro, ele disse: “Senhor, por favor, não faz
isso comigo não”. Obviamente que a gente não ia fazer aquilo.
Primeiro porque a gente não era tão escroto assim. Segundo porque
se alguém descobrisse, era expulsão na certa. O lance era todo era
o terror psicológico. Mas então eu respondi: “Biro Biro, eu vou
te acochambrar, mas isso vai ter um preço. A partir de hoje você
vai se tornar o cara mais na marca (certinho) do seu ano. Eu vou te
tirar dos pelotões elétricos, mas se você der algum outro lance,
aí você estará fudido”.
Cara, eu olho para trás, lembro disso
e penso: cara, que filho da puta de merda eu era. Por isso, gostaria
de aproveitar o blog para pedir desculpas publicamente ao Biro Biro.
Mesmo sendo eu muito novo, acho que isso não é desculpa para eu ter
feito uma covardia dessas. O pior desse sistema de merda foi
durante a visitação dos pais. O Biro Biro vem em minha direção,
com sua irmã e mãe, me apresenta e diz: “Esse é o oficial-aluno
3025 Nuccitelli, ele que me ensinou a ser homem na Marinha”. Cara,
me lembro de rir disso junto com meus amigos. Mas como um sistema
pode alienar as pessoas dessa maneira, era para aquele cara me odiar
e no entanto, ele achava que eu tinha feito bem para ele. Ele nunca
deveria ter pedido para não fazermos aquilo, ele deveria ter nos
denunciado na hora. Mas enfim, o sistema todo o faz se conformar,
seguir ordem quase sempre sem questionar. De toda forma mais uma vez, peço
desculpas pela imbecilidade.. Felizmente, depois disso tudo, até ficamos amigos durante o restante do ano.
Mas então a chegou segunda semana da
adaptação. Nesse período era comum alunos do terceiro ano oferecem
aos primeiro-anistas itens “marafeiros”, ou seja, itens que
permitiam aos alunos "se mostrarem" como militares, principalementa para a mulherada. Como empreendedor,
eu me adiantei e fui o primeiro a ofertar aos alunos uma camisa
marefeira do bad boy fardado de 5.5 abraçado com uma menina. Ninguém era obrigado a comprar, e deixamos
isso bem claro. A galera comprava, como eu comprei no primeiro ano,
porque realmente os itens eram legais de se ter. Foi um sucesso.
Mas havia um “pequeno detalhe”:
comércio a bordo era proibido. Mas a atividade era padrão e ocorria
não só na adaptação. Durante o ano tinha gente que vendia
carteira da Marinha, sapato, mala com símbolo da aviação navao e até havia a “indústria do
chocolate”, com a qual a gente estimava que o Anatoli, da 98,
deveria ter feito muito dinheiro.
Nos últimos dias de adaptação, as
coisas ficavam mais tranquilas. Os adaptadores já tinham gastado a
energia nos primeiros dias e realmente começávamos a fazer amizade
com os alunos. Nesse clima, fazíamos uma brincadeira: uma votação
entre os adaptandos para elegerem categorias de adaptadores:
- Quem foi o mais filho da puta
- Quem foi o mais mãe
- Quem era o mais retardado
Eu fiquei em segundo na votação de
mais filho da puta, perdi para o Beyler. Mas o clima estava tranquilo
e teve gente até me sacaneando: “Ele coloca essa bronca de filho
da puta mais parece o menino da bala Juquinha” .
Durante essa descontração, eu avisei para turma da qual era responsável
o mesmo que o Gomez Muniz tinha alertado 2 anos atrás: “Então
gente, tenho uma notícia boa e uma ruim. A boa é que a adaptação
está terminando. A ruim é que esse foi o período fácil. Se vocês
acharam que fui filho da puta, vocês estão enganados. Você verão
que eu sou um cara tranquilo, nem vão perceber minha presença
durante o ano. Isso porque aqui na adaptação estão só os alunos
gente boa da minha turma. Quando chegar o restante da turma, aí sim
será um inferno”. Um aluno perguntou: “Senhor, você está
brincando né?” ao que respondi: “Infelizmente não”.
E realmente, quando as aulas começaram
eu realmente já tinha ficado parceiro do pessoal e não aplicaria
nenhum trote durante todo ano. Isso por algumas razões: já tinha
tirado todo o “recalque” na adaptaçao e também porque durante
os trotes do início do ano muita gente era pega com a boca na
butija e punida com finais de semana a bordo ou até expulsos. Fora
isso nas experiências com o novo COMCA já percebemos que agora não
haveria a moleza de antes, o bicho realmente ia pegar.
No primeiro dia de aula, mais uma
lambança ocorreu. Quando refizeram a classificação, erraram
novamente. Então, durante a primeira parada, refizeram a lista. Mais
alguns amigos que passaram a adaptação inteira como OfAl deixaram
de sê-lo e isso foi muito triste. Eu passei a ser o Oficial-Aluno
3024, me tornando o comandante do 3o pelotão da 6a
Companhia. Apesar disso, a vantagem foi que o responsável dessa
companhia era o então Tenente Serafim, um dos oficiais mais
íntegros e vibrões que conheci no CN.
Enfim, as coisas continuavam muito bem,
mas isso iria mudar no segundo semestre. Mas isso fica para o próximo
post...
Abs,
Renzo Nuccitelli
5 comentários:
Muito bom saber que você já foi escroto. Quando vier aqui em casa novamente, vou vingar os alunos.
Pois é, preferi falar sobre isso a colocar a sujeira para baixo do tapete. Em minha defesa só posso dizer que, dado o contexto, meu comportamento era normal. Fora isso, acho que também paguei meus pecados no próprio CN, mas deixo isso para cada um tirar sua própria conclusão quando eu escrever o próximo post =D
Muito legais suas estórias do CN, Renzo, e parabéns pelas suas conquistas e pela sua franqueza! Não vejo a hora de ler os próximos capítulos!
Hahahahahahaha... Muito maneiro, cara! To rindo muito aqui em casa. Abração, Qjim.
Voltei no tempo! Parabéns pelos detalhes... por sinal eu q apelidei o amigo de biro biro. Grande abraço do teu camarada Sandro Curió.
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